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Cultura

‘Grande Sertão: Veredas’: aos 65 anos, obra segue repleta de enigmas

Livro revolucionou na linguagem e tratou de seca, pobreza, dilemas religiosos e relações homoafetivas – do Brasil de ontem, hoje e sempre

Publicado por: FM No Tempo 17/07/2021, 10:15

“No princípio, dez primeiras páginas, é meio assim-assim, custa um pouco a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e não larga mais”, escreveu o escritor Fernando Sabino em uma carta endereçada a Clarice Lispector sobre o “novo livro” de João Guimarães Rosa. A carta é de julho 1956. Mas “Grande Sertão: Veredas”, que completa hoje 65 anos, ainda pulsa.

Desde seu lançamento, o livro se destaca tanto nos artigos da crítica especializada como nas planilhas de vendas – feitos que se mantêm até hoje. Ele ocupa a sétima posição de livros mais vendidos de literatura brasileira no Estante Virtual, site que reúne 2.699 livreiros de todo o Brasil. Mas, afinal, o que em “Grande Sertão: Veredas” é tão sedutor?

Foto: Camila Sampaio

‘O sertão é do tamanho do mundo’

A primeira resposta possível é que a obra não se encaixa em um único gênero literário. “Editorialmente, é um romance, mas há uma mistura de gêneros. Há elementos líricos, próprios do drama do teatro, e há também uma fragmentação que tem a ver com modernismo. Dizer que é ‘apenas’ um romance é insuficiente”, explica Jaime Ginzburg, professor titular de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP). “Ele também é a metonímia da sociedade brasileira”, completa.

A obra tem dois grandes chamarizes que estão correlacionados: o formato inovador, em que o autor dá voz a parte da população que não tinha acesso à linguagem escrita; e a representação de conflitos vividos em todo o país por meio de uma grande história recheada de mini conflitos.

“Guimarães Rosa abriu caminhos que não existiam. Antes dele, o aproveitamento da narrativa oral era limitado na literatura erudita. Ele é o primeiro a consolidar isso como matéria digna de literatura, sem preconceito, sem se colocar como superior”, explica Ginzburg.

A oralidade está na narração do protagonista do livro. Numa sinopse que não contempla a magnitude da obra, o narrador é Riobaldo, já na condição de fazendeiro, revivendo seus anseios, amores e dúvidas da época em que conviveu com os jagunços. Dois grandes embates são essenciais para a obra: o primeiro é contra Zé Bebelo e os soldados do governo. O segundo é uma conflagração entre os grupos de jagunços, em que o inimigo-mór é Hermógenes. Mas há ainda o conflito interno de Riobaldo: sua relação afetiva om o companheiro de grupo Diadorim, que o leitor descobre apenas no final ser uma mulher travestida de homem.

A excelência na transcrição do oral Guimarães conquistou ao imergir duas vezes no interior de Minas Gerais. Em 1945, ele passou nove dias viajando de trem e a cavalo. Sete anos depois, acompanhou a condução de uma boiada de 180 cabeças pelo sertão mineiro durante dez dias.

Em ambas as viagens, além de ter a companhia do amigo Pedro Barbosa, Guimarães levou consigo alguns cadernos. Da primeira viagem, “Grande Excursão à Minas”, restaram apenas duas páginas. Já da segunda, resultaram os cadernos “A boiada 1” e “A boiada 2”, que somam 160 páginas e foram a base para “Grande Sertão: Veredas”. Os cadernos atualmente fazem parte do arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP).

Antes de embarcar na viagem de 1945, o mineiro natural de Cordisburgo já esboçava sua ambição de preservar as falas dos sertanejos. “Creio que será uma excursão interessante e proveitosa, que irei fazer de cadernos abertos e lápis no punho”, escreveu Guimarães a seu pai numa carta.

As viagens renderam inspiração para mais de um livro de Guimarães Rosa. Mas foi em “Grande Sertão: Veredas”, quinta das oito obras publicadas pelo autor (além das póstumas “Estas Estórias”, de 1969; “Ave, Palavra”, de1970; e “Antes das Primeiras Estórias”, de 2011), que críticos e acadêmicos encontraram certa similaridade com outras criações já estabelecidas do cânone literário europeu, como “Ulysses”, de James Joyce, e “Doutor Fausto”, de Thomas Mann.

“Mas não é só isso. De uma perspectiva mais contemporânea, ‘Grande Sertão’ é um desafio não resolvido, que apresenta enigmas ainda não esgotados. A cada vez que o livro se recoloca no horizonte dos leitores é como se surgissem novos enfoques e novos questionamentos que têm a ver com as transformações históricas no Brasil”, defende Ginzburg.

O professor defende que, embora haja interpretações perspicazes e respeitadas a cada ano, a cada década e a cada período, o livro se transmuta. “Ele permanece motivando e questionando. Não é possível dizer ‘agora ele está entendido’. Há constantemente uma reabertura do enigma”, diz.

Isso porque dilemas contemporâneos já foram tratados na obra da década de 1950, como a intolerância religiosa e direitos de homossexuais. Além deles, a seca e a pobreza são protagonistas. Esses temas já haviam sido retratados por outros autores, como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, mas a forma como foi contada por Guimarães foi transgressora.

Assim que o livro foi lançado, o crítico literário Antonio Candido foi um dos primeiros a notar o que seria uma quebra de estilo característica do pós-modernismo (geração de 1945, como também é conhecida): a exaltação do regionalismo sob um viés mais social e humano sem abrir mão da estética. Ou, como ele mesmo escreveu, “aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja que se dá ‘de dentro para fora’”.

Na mesma análise, Candido faz um resumo certeiro ao falar que o livro “é uma história de jagunços do Norte de Minas na forma de monólogo ininterrupto, sem divisão ou capítulo, de um velho fazendeiro narrando como se tornou membro e afinal chefe de bando” e exaltar “a estupenda visão do mundo e a inquietude interior elaboradas ao longo do seu fluxo de eloquência e poesia”.

‘A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa’

Entender e explicar “Grande Sertão” pode se tornar um chamado vocacional para alguns. “Fiquei tão embasbacado quando li que falei pra mim mesmo: ‘a humanidade precisa ler esse livro’. Costumo brincar que há muitos anos Guimarães Rosa apareceu em sonho e falou ‘vá Luiz Carlos, vá espalhar minha obra em todos os recantos’”, brinca Luiz Carlos de Assis Rocha, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para concretizar a profecia, ele escreveu o livro “Para ler Grande Sertão: Veredas” (Páginas Editora), em que esmiúça palavra por palavra a obra de 594 páginas. “Há poucas pessoas que leem. Ele é muito estudado, muito louvado, muito consagrado, mas é relativamente pouco lido. Pus na cabeça isso que é necessário disseminar a obra”, defende.

O primeiro empecilho acaba sendo o que o livro tem de mais sedutor: a linguagem. “O livro é um romance oralizado, ou seja, uma história contada por um ex-jagunço. Começa com ele na fazenda contando a história de sua vida”, diz Assis Rocha. Segundo o professor, compreender isso faz com que o leitor “se deixe envolver” com o novo tipo de linguagem, tal qual quando se encontra alguém que tem sotaque e usa gírias distintas.

Para finalizar, ele alerta que não é necessário ter conhecimento prévio, mas é necessário que se tenha um contato anterior com livros de literatura. “É um livro que, apesar de ter a trama interessante, exige que você tenha calma e paciência para entender”, sugere.

“Viver é perigoso”

Uma das portas de entrada para facilitar a leitura são as mídias que bebem de outros recursos. “As gerações de trinta anos para cá estão muito mais ligadas a elementos do audiovisual. Vejo pelos meus alunos, que prestam mais atenção em imagens e vídeos do que numa aula feita só com textos. Então, a gente precisa se adaptar”, diz Jaime Ginzburg. Adaptações são as grandes aliadas para iniciar a leitura.

Além de peças de teatro, o livro já foi adaptado para filme (“Grande Sertão”, de 1965), para minissérie (“Grande Sertão: Veredas”, TV Globo, 1985) e romance gráfico roteirizado por Guazzelli (ele assina somente com um nome) e com arte de Rodrigo Rosa, publicado em 2015 pela Companhia das Letras.

Para fazer a versão em HQ da obra, o roteirista Guazzelli disse ter tido medo. “Não é nem a questão de preconceito com o quadrinho, uma discussão ultrapassada. É pela responsabilidade de ser ‘Grande Sertão’. Você pode fazer uma adaptação boa ou ruim de qualquer coisa. Ao pegar uma obra-prima para adaptar, você já está correndo risco”, diz.

Experiente tanto na arte do roteiro, como na ilustração, o gaúcho manteve os escritos de Guimarães Rosa. “Não podia alterar nada, apenas cortar. Só cortar já é um sacrilégio”, diz, explicando que a recomendação veio da família de Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, falecida esposa de Guimarães e a quem o autor dedica o livro e os direitos – os autores mantiveram a dedicatória “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.

Para que a adaptação fosse feita de forma responsável, Guazzelli, que já havia lido o livro mais de uma vez, marcou passagens que considerava belas e essenciais tanto para o entendimento como para a poesia da história. A tática foi certeira. O trabalho foi agraciado em 2015 com o Troféu HQ Mix de “melhor adaptação para os quadrinhos”, além de ficar em segundo lugar no Prêmio Jabuti na categoria “Adaptação”. Guazzelli perdeu o primeiro lugar para ele mesmo, já que sua adaptação de  “Kaputt” (WMF Martins Fontes) acabou levando a melhor.

Quando Clarice Lispector respondeu aquela carta para Fernando Sabino, ela foi precisa na síntese de seus sentimentos ao ler “Grande Sertão: Veredas”: “Sei que estou meio confusa, mas vai assim mesmo, misturado. Acho a mesma coisa que você: genial”.

FONTE: CNN
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