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Edmar Oliveira

A barbárie que se anuncia

19 de agosto de 2019

Ilustração: Juízo Final de Hieronymus Bosch, fragmento

Domingo, meio dia, nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas, região privilegiada do Rio de Janeiro, um carro parado em um sinal é atacado por um morador de rua, conhecido na região. O motorista e sua acompanhante são brutalmente esfaqueados. O rapaz ainda sai do carro, mas cai moribundo, a moça corre e seus ferimentos felizmente não foram fatais. Um professor de educação física tenta ajudar as vítimas e também é golpeado mortalmente. Um médico salta de uma ambulância que passava no local e ainda tenta ressuscitar as vítimas que falecem no local. A polícia chega rapidamente. Tenta conversar com o irredutível criminoso. Disparam armas não letais, sem êxito para parar o agressor. Os policiais tentam deter o homem ensandecido atirando nas pernas e nessa operação ainda um tiro atinge de raspão o agressor na cabeça. Uma socorrista que chegava também é atingida na perna, e dois outros bombeiros e o médico que prestava socorro foram atingidos por estilhaços dos tiros.

Um crime brutal, não pertencente às estatísticas de violência ligadas ao crime de roubo ou ações criminosas tão comuns na cidade, mas um crime inexplicável, sem motivação aparente, acontecido a partir de um rompante enlouquecido de um morador das ruas dessa cidade. Ruas cada dia mais apinhadas desses desvalidos sociais, que crescem assustadoramente pela crise econômica que nos atinge violentamente.

Cawboy, como era conhecido o agressor aparentemente imotivado, não fazia parte de novas estatísticas de desvalidos. Vivia nas ruas e naquele local há pelo menos três anos. Outros moradores de rua já tiveram problemas com ele e tentaram expulsá-lo da região. Tem histórico de agressão e invasão de propriedades privadas, numa delas alegando ser o dono da propriedade.

A população, excitada pela violência que nos permeia – e que não responde a opressão de nossas autoridades no combate ao crime com mais agressividade – pede mais violência, recolhimento da “horda de desassustados” das ruas, maior repressão. E como remédio pede a hostilidade, a coerção, com a impetuosidade de quem já não aguenta mais, tomando todos s desvalidos como potenciais assassinos. Contribuem assim para a selvageria, a exasperação, a cólera e a ira que nos governam nesses tempos de intolerância.

A autoridade maior do Estado, o governador fascista que foi eleito, ao invés de pensar soluções com especialistas na questão social que nos atinge dramaticamente, bota mais lenha na fogueira ao criticar os policiais que agiram com cautela, declarando que se fosse ele atirava na cabeça do agressor. Parece que nosso governador tem uma fixação por atirar na cabeça de gente pobre – como fez no sobrevoo de helicóptero com Snipes atirando num acampamento ilegal, que por sorte estava vazio. O presidente com seus estapafúrdios lamentou que não tivesse ninguém armado para dar um tiro no agressor. Natural pra quem se elegeu fazendo arminha!

E essas declarações atiça a já intolerância incontida de uma classe média ameaçada por um futuro que não admite poder acontecer com ela. Escondam a realidade por favor, matem-na se preciso for!

É com imensa tristeza que tentamos entender o que não se pode mais entender quando a barbárie fez sua passagem ao ato. O que aconteceu foi o prenúncio da barbárie total que pode nos atingir. O casal, acidentalmente escolhido, e o bom homem que tentou socorrer as vítimas foram sacrificados nesse espectro da barbárie que se anuncia. Mesmo com o socorro chegando prontamente e a polícia agindo com uma cautela civilizada incomum. Os policiais merecem parabéns, apesar dos efeitos colaterais momentâneos complicados, mas que não foram letais.

Quem trabalha com moradores de rua sabe que não se pode tratar da questão como um grupo homogêneo. Encontramos quem tem residência muito longe, mas que não pode ir para casa todos os dias pelo preço exorbitante do transporte público. Outros, muitos menores, fugiram de uma vida de opressão e abusos de toda espécie para fazer da rua a liberdade que não tinham. Há os pedintes, mendigos profissionais, vendedores de bugigangas e lanches ligeiros, viradores inventivos da falta do emprego formal, aplicadores de pequenos golpes, furtos encomendados, guardadores de pedaços de rua conquistados bravamente, etc. Ainda outros têm na droga talvez o último refúgio de uma situação desesperadora, ou/e negociam pequenas quantidades de drogas para a necessária sobrevivência. Muitos foram para as ruas despejados de uma vida que não puderam sustentar e podem diluir-se em outros agrupamentos ou sofrer enormemente com a perda da dignidade. Alguns se refugiam na loucura porque estão equipados com um potencial constitutivo disparado pela situação de abandono. Aqui apenas alguns exemplos de uma diversidade espantosa.

Os moradores de rua são seres vulneráveis, que o estado deve conhecer com vagar e aproximações responsáveis para cuidados que cada grupo venha a requerer. O que vivemos hoje é um abandono irresponsável desses seres humanos em situação de vulnerabilidade extrema. Um programa de recolhimento sem respeitar peculiaridades resulta em enxugar gelo. Os abrigos existentes são insuficientes e funcionam como prisões indesejáveis.

Os governos estão abandonando essas pessoas à própria sorte. Cowboy já tinha dado sinais de um acometimento mental – que o médico que prestou socorro às vítimas tentou diagnosticar. Os serviços de saúde mental vêm sofrendo uma desmontagem absurda. Com ações desastradas o governo evitou o encontro de Cowboy com um serviço que pudesse ajudá-lo. E ele foi acumulando nas ruas influencias delirantes materializadas no abandono e a paranoia que uma cidade arredia e com medo pode provocar. Ele também é vítima de sua loucura. E sua loucura é fruto da barbárie na construção que estamos fazendo de nossa sociedade.

Portanto, não são ações de repressão, recolhimento, internação, em suma uma apartheid dos que têm casas com os que não têm. Assim só geraremos mais barbaridade, crueldade, violência, estupidez, selvageria. Porque não adianta tirá-los de nossas vistas. Eles voltarão.

Ou os governos priorizam ações para atender os mais vulneráveis – e parece que não estão dispostos a fazê-lo – ou a barbárie apenas começou mostrar sua crueza. Enquanto tentamos separar vítima de agressores descobriremos dolorosamente que seremos todos vítimas da barbárie. E todos, agressores para tentar sobreviver.

O crime brutal da Lagoa foi um doloroso alerta vermelho. Se não soubermos lê-lo, sucumbiremos!

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Ilustração: Juízo Final de Hieronymus Bosch, fragmento

DA COSTA E SILVA foi um poeta brasileiro simbolista (Amarante 1885 – Rio de Janeiro 1950). Um dos maiores poetas piauienses. Alguns críticos o comparam a Cruz e Souza até em maior importância. Foi funcionário da Republica e quis ingressar na carreira diplomática. “Nos tempos do barão do Rio Branco não havia concurso para ingressar na carreira diplomática, e a seleção era feita pessoalmente por ele, que conversava com os candidatos, em geral pessoas de família conhecida, de preferência bonitos e falassem línguas estrangeiras. Antônio Francisco da Costa e Silva, ilustre poeta e pai do embaixador e acadêmico Alberto Vasconcellos da Costa e Silva, conversou com o barão sobre a possibilidade de ingresso na carreira, porém o chanceler foi taxativo: – Olha, o senhor é um homem inteligente, admiro-o como poeta, contudo não vou nomeá-lo porque o senhor é muito feio e não quero gente feia no Itamaraty…” (Ribeiro, Guilherme Luiz Leite. Os Bastidores da Diplomacia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2007, p 50). Historia confirmada por seu filho no prefácio de suas Poesias Completas. Alberto da Costa e Silva diz, na versão familiar, que Rio Branco teria ainda acrescentado ”com crueldade”: “Da Costa, você parece um macaco”. Poesias Completas, Da Costa e Silva, Nova Fronteira, 1985.

Da Costa e Silva, que preenchia todos os requisitos para a carreira diplomática, versado em línguas, teve seu sonho recusado apenas por sua aparência física de nordestino atarracado, cabeça chata, cafuzo, filho da índia escravizada estuprada pelo colonizador (como muito de nós piauienses). O tal “pai” da diplomacia brasileira usou do preconceito contra o nordestino para recusar a candidatura de Da Costa. Reza a lenda que a partir daí, apesar de já reconhecido como poeta, foi acometido de uma melancolia que o acompanhou até o fim da vida.

A primeira vingança veio carregando seu DNA no embaixador e acadêmico Alberto – seu filho temporão – diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e maior conhecedor da cultura africana nas suas diversas manifestações.

Alberto já bastaria, tendo realizado o sonho do pai – indo ainda muito além – para vingar Da Costa. Mas agora Bolsonaro, a besta do nosso apocalipse, destampa o caixão do preconceituoso barão, indicando um embaixador descendente de migrantes europeus de “fina estampa” fotográfica (apenas, se é que podemos esquecer a postura do tosco filho mais novo do boçal), mas uma perfeita anta (que me desculpem as antas) sem nenhum predicado para ser um diplomata.

Se Rio Branco se remexe na tumba, nosso Da Costa deve gargalhar, e já estaria curado de uma melancolia provocada por um preconceito étnico, que o tosco, boçal, beócio e estúpido imbecil colocado na presidência nos dias de hoje sabe compartilhar muito bem.

Pois bem, poeta, hoje temos orgulho. Orgulho de sermos nordestinos, livres do preconceito étnico que o progresso cultural e evolutivo da sociedade já destruiu e só permanece em mentes toscas que tentam frear o processo civilizatório.

Edmar Oliveira

psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante

Desenho de Dino Alves

Participar de uma roda de conversa que tratou do Morar em Liberdade, a respeito do dispositivo das Residências Terapêuticas, recurso da Reforma Psiquiátrica, foi uma experiência que pode nos levar ao encontro inevitável da política com a ciência.

A Reforma Psiquiátrica ao propor uma prática a partir do respeito aos direitos humanos para se posicionar contra os manicômios, a inclusão da loucura na sociedade de forma ética e a implantação de serviços substitutivos e na comunidade em oposição ao aprisionamento manicomial, seguramente necessita de um posicionamento político para sua existência. Assim ela sai de uma discussão puramente científica metodológica para a afirmação de que o método necessita da liberdade política para existir.

Ora, tendo dedicado toda uma vida às práticas reformistas, o rompimento com um governo autoritário é inexorável para quem a defende. Aqui não se trata de discutir opções políticas. A extrema direita se coloca como a única opção e essa condição retira o ar que se pode respirar no movimento que se convencionou chamar Reforma Psiquiátrica.

É nesse contexto que se retorna com a execrável internação involuntária em massa na forma de um decreto que confronta a lei 10.216; propõem-se novos leitos psiquiátricos baseados em estatísticas “cientificas” de onde não existe Reforma e confronta-se a legislação que garante serviços comunitários antes da internação; apresenta-se uma proposta de “melhoria” da Reforma e não uma proposta clara de contrarreforma para na prática inviabilizar a Reforma em seus princípios básicos; enfim, fagocitar uma proposta, aniquilando-a, também é uma forma autoritária de inviabilizar essa proposta, mesmo que o autoritarismo finja não ser autoritário. Em outras palavras, minando contínua e vagarosamente, o autoritarismo que parece não explícito pode ser mais cruel por evitar uma reação, se fosse explicitamente reconhecido.

As práticas do governo Bolsonaro são contra nosso lema de “Tratar em Liberdade”, embora tente roubar o capital de simpatia que conquistamos na sociedade. Costumo discutir com meus adversários políticos de hoje que a proposta que eles defendem me inviabiliza como trabalhador da saúde mental, portanto a minha luta será sempre para impedir a vitória de quem me impede de exercer com liberdade a profissão que escolhi. Estamos numa guerra declarada. A extrema direita não é uma vertente política democrática que entregue o poder pacificamente. Reclamará muito mais que Aécio e relutará em sair de cena com as armas que lhe for possível.

Portanto, minha posição é de que precisamos da luta política para defendermos os princípios e práticas dos dispositivos criados pela Reforma Psiquiátrica.

Apenas um contraponto ao reconhecimento de que mostramos que a nossa forma de “Tratar em Liberdade” é mais viável e segura do que o manicômio; de que acumulamos uma experiência que não pode mais ser negada frente aos seus resultados; de que a esperança provocada com nossa prática pode ser um motor da resistência; de que os resultados conseguidos não podem ser negados pelas testemunhas da nossa prática.

Não nego essa premissas colocadas por meus colegas debatedores e louvo a persistência de defendê-las. A minha discordância está além dessas premissas.

Quem se interessar pelo tema não deve perder esse debate em que partilhei a honrosa companhia de Ana Szapiro e Sérgio Levcovitz, coordenados pelo mestre André Guerreiro. André coordena a pesquisa “Tratar em Liberdade” Fiocruz-Brasília, exposição fotográfica e incontáveis horas de vídeo feitos em parceria com a TV Pinel, verdadeiro manancial para os pesquisadores de hoje e amanhã.

A chance de eu estar errado é muito grande. E, sinceramente, espero estar.

Edmar Oliveira

psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante

 

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Desenho: Gervásio

Faz um certo tempo e eu não compreendi na época. Estava com um paulista que visitava o Rio e ele atacava com muita raiva a prefeitura de Haddad. Numa conversa, tentando compreender aquela raiva – que já era ódio – o cara exemplificava a discordância na diminuição da velocidade das marginais e nas ciclovias que atrapalhavam o trânsito. Fiquei sem compreender o “não se pode dirigir mais em São Paulo” irascível que refutava o argumento de uma regulamentação civilizatória necessária, notadamente quando essa regulamentação diminui a taxa de mortalidade da via pública, e só agora é que a minha ficha começou a cair.

Enquanto o ministro Paulo Guedes era sabatinado pela oposição e lambido pelos governistas tentando passar o fim da aposentadoria solidária numa comissão parlamentar – proposta basal da governabilidade segundo a tese governista –, Bolsonaro negociava com o presidente da Câmara um projeto de lei que desregulamenta as leis de trânsito (ponto na carteira de habilitação, fim de pardais, extinção de exames toxicológicos para caminhoneiros, fim das cadeirinhas de crianças no banco traseiro, talvez a extinção do cinto de segurança e a autorização para dirigir embriagado).

A princípio eu estranhava a passividade do Rodrigo Maia em receber o que me parecia uma tamanha maluquice, enquanto Guedes se esforçava para aprovar a razão do neoliberalismo ter contribuído para a eleição de Bolsonaro. Segundo outros incomodados com a situação, Bolsonaro nos distraía com suas bizarrices, enquanto Guedes e o congresso nos enfiavam goela abaixo o pior desejo sórdido de exploração neoliberal. De qualquer forma, concordávamos que as maluquices de Bolsonaro só reafirmavam sua inaptidão para o cargo de presidente.

A ficha ia caindo enquanto lembrava que todas as atitudes “presidenciais” de Bolsonaro foram de desregulamentar: acabar com o estatuto do desarmamento que regulamentava a comercialização e uso de armas; desregulamentar a utilização dos agrotóxicos com risco de envenenamento de nossa produção agrícola; desregulamentação de direitos trabalhistas, permitindo que se façam contratos onde o funcionário possa “optar” para não ter férias e 13º salário; desregulamentar o desmatamento da Amazônia, podendo causar um crime ambiental de proporções incalculáveis; desregulamentar a demarcação de terras indígenas, deixando os nativos perderem seu habitat; desregulamentar os movimentos sociais, permitindo sua criminalização; abolição do Ministério do Trabalho, que regulamentava as leis trabalhistas; desregulamentar o tratamento para AIDS e para usuários de drogas permitindo a internação involuntária destes e a apressar o extermínio dos “aidéticos”; etc. etc.

O processo civilizatório necessita de regulamentações para a proteção da vida, dos mais frágeis, dos carentes; regular direitos, costumes para convivência social, o uso dos bens comuns, da propriedade; a necessidade de deveres para todos, que garantam o direito das minorias para que não sejam arrastadas para guetos. Enfim a regulamentação exige a submissão a regras, postula deveres, para garantir direitos. Para que sejamos todos cidadãos.

Então me lembrei do paulista, meu conhecido, e seu ódio por uma prefeitura que exigia submissão a regras, que postulava deveres. Essas exigências do processo civilizatório soavam como se tirassem os seus direitos para impor direitos de minorias. Ora, numa sociedade escravista como a nossa, os herdeiros culturais dos donos de escravos não querem aceitar regras ou deveres. Essas, só para os descendentes de escravos, essa gente sem costume que precisam de regras para saber o seu lugar.

A sociedade escravista, tão bem dissecada por Jessé Souza, é composta por uma camada que se acha de maioria branca, hetero, machista, com direitos hereditários sobre educação, saúde, emprego, moradia, lazer e que não precisa de regulamentações para garantir direitos de uma minoria, seja ela de gays, feministas, negro azougado, indígena zangadiço, pobre conflituoso.

E essa camada odienta, que saiu do armário com raiva porque seus direitos de mando estavam correndo perigo, elegeu Bolsonaro. E ela, que se acha composta por homens “de bem” pode andar armada para se defender dos bandidos; deve aumentar a produção usando agrotóxico que não matam ninguém dos seus; desmatar para a produção porque esse negócio de clima é ideológico; tirar indígenas improdutivos de terras produtivas; não ter que dar férias ou 13º ao empregado com a desculpa de empregar mais; aposentadoria é para quem pode poupar para a velhice; pardais são só caça-niqueis; meus netos eu sei proteger no banco de trás sem essa frescura de cadeirinha; velocidade eu sei controlar; ciclovias é boa para Amsterdã, aqui só atrapalha. Vão regulamentar a puta que os pariu!

Caiu a ficha e eu entendi agora aquele conhecido paulista com ódio da velocidade mínima nas marginais e das ciclovias que atrapalhavam o trânsito. Nem o vejo mais. Votou em Bolsonaro.

E Bolsonaro não está fazendo nenhuma maluquice. Tá só cultivando o eleitorado que foi apoia-lo num domingo verde-amarelo. Precisa deles para que Guedes nos torne escravos do neoliberalismo.

 

Edmar Oliveira

psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante

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desenho: Gervásio

 

Voltar a viver (INÍCIO)

5 de junho de 2019

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Foto – Divulgação / Edmar Oliveira

Trecho de “Ouvindo Vozes”, Vieira & Lent, RJ, 2009. Esse trecho mostra o início das transformações acontecidas no Hospital do Engenho de Dentro. Antes das Residências Terapêuticas. Apenas uma ensaio da saída definitiva. Se não aconteceu o fim do manicômio, aconteceu a travessia em que tentamos. Há muitas histórias de sucesso, enquanto fazíamos a travessia.

 

Já nos referimos ao incômodo que causava a situação dos moradores do hospício. Tudo neles era de um absurdo assustador e nenhuma questão aparente se colocava à vida que segue no hospício. Moravam em enfermarias. Tinham o aparelhamento de cura no seu entorno. Mas como eram mansos de coração não careciam de atenção. Quase que invisíveis. Não incomodavam. Raramente agitavam. Se abrissem as portas saiam. Se fechassem as portas, ficavam. Se não vinham comer, tomar remédio, ninguém notava muito não. Na contagem dos leitos podiam não ser achados e fazer alguma falta. Nem sempre. Os mais mansos podiam até dormir fora da enfermaria. No outro dia voltavam. E esta vida sem importância, sem abalos na saúde, fazia do prontuário um repetir incontável do mesmo escrever. Podia se fazer um carimbo e repetir: quadro inalterável, medicação mantida. Ou, quadro mantido, medicação inalterada. Tanto fazia. A morte descia dos umbrais e abocanhava uma alma na maior naturalidade. Tinha chegado a hora. Constatado o óbito. Parada cardíaca.

O Programa de Moradias, parte da proposta de intervenção que pensava as ações para os pacientes denominados moradores, coloca uma questão radical a partir da situação paradoxal que nos referimos anteriormente.

Se o paciente morasse no hospício há mais de dois anos, era considerado morador. E morador tem morada. Portanto, onde se mora não tem médico, enfermeiro, posto de enfermagem, mas casa. Mas vamos devagar, porque o programa começou ainda nas enfermarias tradicionais. Saíram os técnicos de enfermaria. Foram contratados cuidadores. Invenção, meio que baseada nos cuidadores de idosos. Mas não exigimos grande formação. Cuidador tem cuidado. Pessoas da comunidade, da firma de limpeza ou da segurança, gente que se relacionava bem com os pacientes. Formamos uma equipe. Fizemos um curso de treinamento. E o programa inicia. Cuidador cuida: da higiene, do passeio, da organização do cotidiano, das banalidades que a vida nos sujeita. Fica mantido um médico, com formação em Saúde da Família, para fazer diagnóstico e encaminhar para tratamento especializado: psiquiátrico no ambulatório ou no CAPS. Hipertensão, diabetes, nos programas de prevenção nos postos de saúde. Consultas especializadas nos ambulatórios e hospitais terciários, assim como as gentes comuns da cidade. Uma pequena equipe de enfermagem fica no programa para ações especializadas privativas: fazer injeções, curativos, passar sonda, etc., e procurada pelos cuidadores para o atendimento de seus usuários.

Isso provocou uma verdadeira reviravolta no hospício. Os funcionários antigos, retirados dos cuidados ficaram revoltados. Vieram as acusações de falta de cuidados com os doentes, que agora eram tratados apenas como moradores. Os dados estatísticos foram cruéis com estes críticos. Primeiro o índice de mortalidade, daquelas mortes constatadas, baixou demais. Os materiais de enfermagem, com gaze, anti-sépticos, seringas, algodão, etc., tiveram um consumo aumentado. Não pelo desperdício (note-se que estas ações eram feitas pelos técnicos), mas pelo melhor cuidado que o cuidador solicitava do técnico..

E o cuidador colocou uma nova ordem de prioridades. Fizemos compras de camisas de malha de diversas cores, calças de vários modelos, tênis, sapatos, chinelos de uma variedade para a escolha. Perfumes, desodorantes de muitos tipos. Guardamos tudo isso numa sala, na qual o cliente era levado para escolher o seu kit. Começava uma individualidade de verdade. Mesmo ainda nas enfermarias o morar foi decidido por uma relação afetiva e não da ordem dos técnicos ou por diagnósticos. Foi um troca-troca danado. Quase não pára, mas se aquietou.

Isso foi o que podemos falar de fase um. Mudanças drásticas. A paciente que nunca calçara chinelos, se teve o cuidado de fornecer um com amarrado por trás para que não se perdesse. O mesmo com sapatilhas de pressão para mulheres. Logo, logo, estavam acostumados. Número de sapato no tamanho do pé. Parece bobagem? E é, mas no hospício não é. Um com camisa azul, outro de verde, moças de vestidos de moças, que o hospício nunca vira. Hábitos e costumes de mudança galopante. Banalidades do cotidiano. Nenhuma invenção.

Um episódio de destaque. Lenira não quis as vestes novas. Continuava com sua farda brim azul hospício ou cinza manicômio, não querendo os vestidos e outras roupas novas oferecidas. Lembro que o diagnóstico técnico era o do quadro psiquiátrico. Ensimesmada, não aceitava mudanças. E o diagnóstico do saber ia se impondo. Uma cuidadora, usando o senso comum, sem se conformar com a atitude de Lenira, fica a sós com ela e mostra roupas com perguntas pertinentes: “Você não gosta destas roupas?” – “Gosto”. – “E porque não troca?” – “não quero ir embora”!. Deus do céu! Estava gravada em Lenira a memória das razões do hospício. A farda de brim para os internos, na alta a roupa civil… Explicado que ela não teria que ir embora, aceitou as roupas com um sorriso impagável…

 

Edmar Oliveira é psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante

Os mais antigos lembram uma propaganda de vodca em que ficou famosa a frase: “eu sou você amanhã.” O anúncio mostrava um ator que bebia muito, inteiro no dia seguinte querendo alardear que a bebida não causava ressaca. Como a vodca era muito ruim a frase foi invertida de sentido em muitas piadas.

Lembrei-me dela agora que passei uma semana em Buenos Aires. Já tinha estado lá algumas vezes no passado e admirava a bonita arquitetura da cidade (inspirada na reforma de Georges-Eugène Haussmann na Paris do século XIX), que aqui também imitamos, mas já deformamos como é do nosso estilo. Buenos Aires das outras visitas a mim parecia uma cidade europeia com seus transeuntes vestidos elegantemente, com um ar aristocrático porteño que destoava dos seus habitantes estrangeiros ou mestiços argentinos do interior. As ruas alegres, o comércio fervilhante só encontrava protestos – todas às vezes – na Plaza de Mayo.

Desta vez estive noutra Buenos Aires. Não foi pior o impacto porque já esperava o golpe provocado pela onda neoliberal que nos antecedeu por pouco. Mas confesso que foi maior que a expectativa.

O “modelito” é o mesmo ao que estamos sofrendo na pele. Retirada dos direitos trabalhistas, “uberização” das relações de trabalho, reforma da previdência pública, repressão nas periferias e aos costumes. Concentração de capital com privilégio aos rentistas.

A cidade ficou triste. As antigas bonitas fachadas estão tristes e descuidadas. Muitas lojas fechadas. Placas de “alquiler y venta”, embaixo, acima. A elegância orgulhosa porteña parece ter dado lugar a um traje discreto para suportar o frio que já começa. Impressiona a quantidade de pedintes e moradores de rua, alguns encabulados ainda com a recente situação. Jubilados (como se chama os velhos aposentados) pedintes, vendendo quinquilharias ou “assaltando” lixeiras sem cerimônia.

A aqui anunciada reforma que atingiu em cheio os jubilados foi feita há um ano e meio e já deixou marcas: com as aposentadorias congeladas e numa inflação anual de quase 50%, matou a aposentadoria mínima (9300 pesos ou 930 reais). A luz aumentou 32%, gás 35%, água 38%, o transporte 40%, apesar de muito mais barato que o nosso.

O desemprego atinge a todos e já podemos ver rostos porteños em trabalhos braçais, antes reservados aos mestiços estrangeiros e do interior. O dólar vale quase igual ao euro, numa tentativa desesperada de evitar a desvalorização da moeda. Real que compravam por 9,30 pesos já pagavam 10,00 pesos cinco dias depois nessa nossa viagem.

A reforma de Macri – como a daqui – prometia falsa e enganosamente gerar empregos. Claro que a meta da reforma é entregar a poupança do trabalhador para os rentistas e não geral capital produtivo. A Argentina, por esse caminho, entrou em uma crise profunda.

Na Plaza de Mayo não só as Madres ou os “no válido” combatentes das Malvinas, como antigamente. Hoje eles se somam as mães de filhos assassinados na periferia por policiais (“la policía dispara primero y luego preguntar”); ao movimento LBGTs (“asesinado por la policía a menudo”); os jubilados e o movimento de Salud Mental (como agora aqui, guerra às drogas ilícitas), entre outros.

O problema é que o que nos reserva o amanhã vem acompanhado de um tsunami maior. Tento explicar. A tragédia argentina foi provocada pela direita. Claro que eles tentam prender a Cristina para afastá-la da eleição de outubro, como aqui fizeram com o Lula. Senão ela ganha. Mas a direita é um pouco mais mansa, comícios pró-Cristina estão rolando. Não há qualquer receio de suspenderem a eleição.

Aqui foi eleita a extrema direita proto-fascista para fazer as reformas que o neoliberalismo deseja. O estrago será bem maior. “Eu sou você amanhã – dizemos para a Argentina – , mas o estrago proto-fascista será maior.

Como nos disse um velho peronista, motorista de táxi, enquanto conversamos sobre a situação de nossos países rodando pelas ruas de Buenos Aires: – “Bolsonaro es un delincuente!”

 

Edmar Oliveira é Psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante

O capitalismo costumava mandar à guerra o excedente improdutivo da população. As ditaduras os matavam simplesmente. O neoliberalismo inventou a forma cruel de deixar morrer os excluídos.

E para isso criou a competição insana para que os excluídos sejam condenados pelo seu fracasso, por dificuldades individuais incapacitantes. Criou até a figura do “Coach” para tentar recuperar alguns para que não caiam na categoria de excluídos. Como se estivéssemos todos em uma disputa esportiva e os perdedores devem dar lugar aos mais capazes.

E todos querem estar no time dos incluídos, nunca dos excluídos, dos fracassados. Essa percepção disseminada pela mídia, pela publicidade, pelas as instituições antes formadoras de coletividades, gera uma competição, onde parece que se foi incluído por mérito e excluído por demérito.

O aparelho de estado neoliberal vai tirar todo o investimento nos excluídos (antes amparados pelas políticas de bem-estar social) e aplicar a necropolítica competente para desamparar os excluídos.

Acabar com os direitos trabalhistas significa desamparar quem ficou pra trás e facilitar a vida dos empreendedores meritocráticos. Como não tem vaga na primeira fila pra todo mundo, alguns, antes incluídos, podem cair na vala comum do excluídos. É impressionante o número de pequenos comércios, pequenas empresas fechando ultimamente. O jornal não noticia o drama dos fracassados. E o número de moradores de rua aumenta a olhos vistos. No afã da concentração do capital o neoliberalismo abandona de vez os excluídos à própria sorte e não mais se preocupa com a morte deles.

Sem saúde, educação, segurança racional os mais pobres são logo atingidos. Por susto, por bala ou vício. O fechamento da farmácia popular vai apressar a morte de quem precisava do remédio para viver. O encerramento do Mais-Médicos já produziu um número expressivo: 100 mil mortes precoces, isto é, que não deveriam acontecer com a continuidade do programa. As filas de cirurgias aumentam e muitos morrerão na fila. E, claro, aumenta a violência dos que não se conformam com a situação de exclusão.

A Reforma da Previdência e suas pequenas maldades produzirá mais morte aos excluídos. Alguns poucos exemplos: o BPC  é um verdadeiro crime com os velhos abandonados; a diminuição da pensão ao teto de dois mil deixará famílias, antes incluídas, na exclusão; o não pagamento de aposentadoria integral ao acidentado ou vítima de doença crônica condenará o antes incluído produtivo em excluído condenado a morrer a míngua. Portanto, além de ter que trabalhar quarenta anos para ter uma aposentadoria digna, acidentes de percurso podem não deixar você chegar lá numa aposentadoria bem perto da morte. Mas você não terá aposentadoria se não capitalizar dinheiro nos bancos.

O que Paulo Guedes quer fazer não é uma reforma, mas acabar com a aposentadoria e confiscar o dinheiro do trabalhador que foi poupado pela forma de solidariedade vigente. O neoliberalismo tá de olho na quantidade de recursos que alimentam a aposentadoria solidária para capitaliza-la no mercado financeiro.

Ora, pela regra constitucional em vigor, os recursos destinados à aposentadoria – além da burla de destinar o total previsto – mantém uma vultosa quantidade de capital que não pode ser utilizado. Esse capital pertence ao trabalhador. É desse capital que o neoliberalismo quer dispor. E o terá no regime de capitalização.

Portanto, o que está em jogo não é se a previdência pode ser consertada – se é que tem o rombo que eles anunciam. Eles querem é por a mão do capital que pertence ao trabalhador e com a necropolítica abandoná-lo à própria sorte.

Não é só uma reforma. Mas o gigantesco roubo do dinheiro da previdência e deixar o assaltado morrer.

Edmar Oliveira é Psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante

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